quinta-feira, 5 de março de 2009

Conceito de Política

DICIONÁRIO DE POLÍTICA

Política

I. O SIGNIFICADO CLÁSSICO E MODERNO DE POLÍTICA. Derivado do adjetivo originado de pólis (politikós), que significa tudo o que se refere à cidade e, conseqüentemente, o que é urbano, civil, público, e até mesmo sociável e social, o termo Política se expandiu graças à influência da grande obra de Aristóteles, intitulada Política, que deve ser considerada como o primeiro tratado sobre a natureza, funções e divisão do Estado, e sobre as várias formas de Governo, com a significação mais comum de arte ou ciência do Governo, isto é, de reflexão, não importa se com intenções meramente descritivas ou também normativas, dois aspectos dificilmente discrimináveis, sobre as coisas da cidade. Ocorreu assim desde a origem uma transposição de significado, do conjunto das coisas qualificadas de um certo modo pelo adjetivo "político", para a forma de saber mais ou menos organizado sobre esse mesmo conjunto de coisas: uma transposição não diversa daquela que deu origem a termos como física, estética, ética e, por último, cibernética. O termo Política foi usado durante séculos para designar principalmente obras dedicadas ao estudo daquela esfera de atividades humanas que se refere de algum modo às coisas do Estado: Politica methodice digesta, só para apresentar um exemplo célebre, é o título da obra com que Johannes Althusius (1603) expôs uma das teorias da consociatio publica (o Estado no sentido moderno da palavra), abrangente em seu seio várias formas de consociationes menores.

Na época moderna, o termo perdeu seu significado original, substituído pouco a pouco por outras expressões como "ciência do Estado", "doutrina do Estado", "ciência política", "filosofia política", etc., passando a ser comumente usado para indicar a atividade ou conjunto de atividades que, de alguma maneira, têm como termo de referência a pólis, ou seja, o Estado.

Dessa atividade a pólis é, por vezes, o sujeito, quando referidos à esfera da Política atos como o ordenar ou proibir alguma coisa com efeitos vinculadores para todos os membros de um determinado grupo social, o exercício de um domínio exclusivo sobre um determinado território, o legislar através de normas válidas erga omnes, o tirar e transferir recursos de um setor da sociedade para outros, etc.; outras vezes ela é objeto, quando são referidas à esfera da Política ações como a conquista, a manutenção, a defesa, a ampliação, o robustecimento, a derrubada, a destruição do poder estatal, etc. Prova disso é que obras que continuam a tradição do tratado aristotélico se intitulam no século XIX Filosofia do direito (Hegel, 1821), Sistema da ciência do Estado (Lorenz von Stein, 1852-1856), Elementos de ciência política (Mosca, 1896), Doutrina geral do Estado (Georg Jellinek, 1900). Conserva parcialmente a significação tradicional a pequena obra de Croce, Elementos de política (1925), onde Política mantém o significado de reflexão sobre a atividade política, equivalendo, por isso, a "elementos de filosofia política". Uma prova mais recente é a que se pode deduzir do uso enraizado nas línguas mais difundidas de chamar história das doutrinas ou das idéias políticas ou, mais genericamente, história do pensamento político à história que, se houvesse permanecido invariável o significado transmitido pelos clássicos, teria de se chamar história da Política, por analogia com outras expressões, como história da física, ou da estética, ou da ética: uso também aceito por Croce que, na pequena obra citada, intitula Para a história da filosofia da política o capítulo dedicado a um breve excursus histórico pelas políticas modernas.

II. A TIPOLOGIA CLÁSSICA DAS FORMAS DE PODER. O conceito de Política, entendida como forma de atividade ou de práxis humana, está estreitamente ligado ao de poder. Este tem sido tradicionalmente definido como "consistente nos meios adequados à obtenção de qualquer vantagem" (Hobbes) ou, analogamente, como "conjunto dos meios que permitem alcançar os efeitos desejados" (Russell). Sendo um destes meios, além do domínio da natureza, o domínio sobre os outros homens, o poder é definido por vezes como uma relação entre dois sujeitos, dos quais um impõe ao outro a própria vontade e lhe determina, malgrado seu, o comportamento. Mas, como o domínio sobre os homens não é geralmente fim em si mesmo, mas um meio para obter "qualquer vantagem" ou, mais exatamente, "os efeitos desejados", como acontece com o domínio da natureza, a definição do poder como tipo de relação entre sujeitos tem de ser completada com a definição do poder como posse dos meios (entre os quais se contam como principais o domínio sobre os outros e sobre a natureza) que permitem alcançar justamente uma "vantagem qualquer" ou os "efeitos desejados".

O poder político pertence à categoria do poder do homem sobre outro homem, não à do poder do homem sobre a natureza. Esta relação de poder é expressa de mil maneiras, onde se reconhecem fórmulas típicas da linguagem política: como relação entre governantes e governados, entre soberano e súditos, entre Estado e cidadãos, entre autoridade e obediência, etc.

Há várias formas de poder do homem sobre o homem; o poder político é apenas uma delas. Na tradição clássica que remonta especificamente a Aristóteles, eram consideradas três formas principais de poder: o poder paterno, o poder despótico e o poder político. Os critérios de distinção têm sido vários com o variar dos tempos. Em Aristóteles se entrevê a distinção baseada no interesse daquele em benefício de quem se exerce o poder: o paterno se exerce pelo interesse dos filhos; o despótico, pelo interesse do senhor; o político, pelo interesse de quem governa e de quem é governado, o que ocorre apenas nas formas corretas de Governo, pois, nas viciadas, o característico é que o poder seja exercido em benefício dos governantes. Mas o critério que acabou por prevalecer nos tratados jusnaturalistas foi o do fundamento ou do princípio de legitimação, que encontramos claramente formulado no cap. XV do Segundo tratado sobre o governo de Locke: o fundamento do poder paterno é a natureza, do poder despótico o castigo por um delito cometido (a única hipótese neste caso é a do prisioneiro de guerra que perdeu uma guerra injusta), do poder civil o consenso. A estes três motivos de justificação do poder correspondem as três fórmulas clássicas do fundamento da obrigação: ex natura, ex delicto, ex contractu. Nenhum dos dois critérios permite, não obstante, distinguir o caráter específico do poder político. Na verdade, o fato de o poder político se diferenciar do poder paterno e do poder despótico por estar voltado para o interesse dos governantes ou por se basear no consenso, não constitui caráter distintivo de qualquer Governo, mas só do bom Governo: não é uma conotação da relação política como tal, mas da relação política referente ao Governo tal qual deveria ser. Na realidade, os escritores políticos não cessaram nunca de identificar seja Governos paternalistas, seja Governos despóticos, ou então Governos em que a relação entre Governo e súditos se assemelhava ora à relação entre pai e filhos, ora à entre senhor e escravos, os quais nem por isso deixavam de ser Governos tanto quanto os que agiam pelo bem público e se fundavam no consenso.

III. A TIPOLOGIA MODERNA DAS FORMAS DE PODER. Para acharmos o elemento específico do poder político, parece mais apropriado o critério de classificação das várias formas de poder que se baseia nos meios de que se serve o sujeito ativo da relação para determinar o comportamento do sujeito passivo. Com base neste critério, podemos distinguir três grandes classes no âmbito de um conceito amplíssimo do poder. Estas classes são: o poder econômico, o poder ideológico e o poder político. O primeiro é o que se vale da posse de certos bens, necessários ou considerados como tais, numa situação de escassez, para induzir aqueles que não os possuem a manter um certo comportamento, consistente sobretudo na realização de um certo tipo de trabalho. Na posse dos meios de produção reside uma enorme fonte de poder para aqueles que os têm em relação àqueles que os não têm: o poder do chefe de uma empresa deriva da possibilidade que a posse ou disponibilidade dos meios de produção lhe oferece de poder vender a força de trabalho a troco de um salário. Em geral, todo aquele que possui abundância de bens é capaz de determinar o comportamento de quem se encontra em condições de penúria, mediante a promessa e concessão de vantagens. O poder ideológico se baseia na influência que as idéias formuladas de um certo modo, expressas em certas circunstâncias, por uma pessoa investida de certa autoridade e difundidas mediante certos processos, exercem sobre a conduta dos consociados: deste tipo de condicionamento nasce a importância social que atinge, nos grupos organizados, aqueles que sabem, os sábios, sejam eles os sacerdotes das sociedades arcaicas, sejam os intelectuais ou cientistas das sociedades evoluídas, pois é por eles, pelos valores que difundem ou pelos conhecimentos que comunicam, que se consuma o processo de socialização necessário à coesão e integração do grupo. Finalmente, o poder político se baseia na posse dos instrumentos mediante os quais se exerce a força física (as armas de toda a espécie e potência): é o poder coativo no sentido mais estrito da palavra. Todas estas três formas de poder fundamentam e mantêm uma sociedade de desiguais, isto é, dividida em ricos e pobres com base no primeiro, em sábios e ignorantes com base no segundo, em fortes e fracos, com base no terceiro: genericamente, em superiores e inferiores.

Como poder cujo meio específico é a força, de longe o meio mais eficaz para condicionar os comportamentos, o poder político é, em toda a sociedade de desiguais, o poder supremo, ou seja, o poder ao qual todos os demais estão de algum modo subordinados: o poder coativo é, de fato, aquele a que recorrem todos os grupos sociais (a classe dominante), em última instância, ou como extrema ratio, para se defenderem dos ataques externos, ou para impedirem, com a desagregação do grupo, de ser eliminados. Nas relações entre os membros de um mesmo grupo social, não obstante o estado de subordinação que a expropriação dos meios de produção cria nos expropriados para com os expropriadores, não obstante a adesão passiva aos valores do grupo por parte da maioria dos destinatários das mensagens ideológicas emitidas pela classe dominante, só o uso da força física serve, pelo menos em casos extremos, para impedir a insubordinação ou a desobediência dos subordinados, como o demonstra à saciedade a experiência histórica. Nas relações entre grupos sociais diversos, malgrado a importância que possam ter a ameaça ou a execução de sanções econômicas para levar o grupo hostil a desistir de um determinado comportamento (nas relações entre grupos é de somenos importância o condicionamento de natureza ideológica), o instrumento decisivo para impor a própria vontade é o uso da força, a guerra.

Esta distinção entre três tipos principais de poder social se encontra, se bem que expressa de diferentes maneiras, na maior parte das teorias sociais contemporâneas, onde o sistema social global aparece direta ou indiretamente articulado em três subsistemas fundamentais, que são a organização das forças produtivas, a organização do consenso e a organização da coação. A teoria marxista também pode ser interpretada do mesmo modo: a base real, ou estrutura, compreende o sistema econômico; a supra-estrutura, cindindo-se em dois momentos distintos, compreende o sistema ideológico e aquele que é mais propriamente jurídicopolítico. Gramsci distingue claramente na esfera supra-estrutural o momento do consenso (que chama sociedade civil) e o momento do domínio (que chama sociedade política ou Estado). Os escritores políticos distinguiram durante séculos o poder espiritual (que hoje chamaríamos ideológico) do poder temporal, havendo sempre interpretado este como união do dominium (que hoje chamaríamos poder econômico) e do imperium (que hoje designaríamos mais propriamente como poder político). Tanto na dicotomia tradicional (poder espiritual e poder temporal) quanto na marxista (estrutura e supra-estrutura), se encontram as três formas de poder, desde que se entenda corretamente o segundo termo em um e outro caso como composto de dois momentos. A diferença está no fato de que, na teoria tradicional, o momento principal é o ideológico, já que o econômico-político é concebido como direta ou indiretamente dependente do espiritual, enquanto que, na teoria marxista, o momento principal é o econômico, pois o poder ideológico e o político refletem, mais ou menos imediatamente, a estrutura das relações de produção.

IV. O PODER POLÍTICO. Embora a possibilidade de recorrer à força seja o elemento que distingue o poder político das outras formas de poder, isso não significa que ele se resolva no uso da força; tal uso é uma condição necessária, mas não suficiente para a existência do poder político. Não é qualquer grupo social, em condições de usar a força, mesmo com certa continuidade (uma associação de delinqüência, uma chusma de piratas, um grupo subversivo, etc.), que exerce um poder político. O que caracteriza o poder político é a exclusividade do uso da força em relação à totalidade dos grupos que atuam num determinado contexto social, exclusividade que é o resultado de um processo que se desenvolve em toda a sociedade organizada, no sentido da monopolização da posse e uso dos meios com que se pode exercer a coação física. Este processo de monopolização acompanha pari passu o processo de incriminação e punição de todos os atos de violência que não sejam executados por pessoas autorizadas pelos detentores e beneficiários de tal monopólio.

Na hipótese hobbesiana que serve de fundamento à teoria moderna do Estado, a passagem do Estado de natureza ao Estado civil, ou da anarchía à archía, do Estado apolítico ao Estado político, ocorre quando os indivíduos renunciam ao direito de usar cada um a própria força, que os tornava iguais no estado de natureza, para o confiar a uma única pessoa, ou a um único corpo, que doravante será o único autorizado a usar a força contra eles. Esta hipótese abstrata adquire profundidade histórica na teoria do Estado de Marx e de Engels, segundo a qual, numa sociedade dividida em classes antagônicas, as instituições políticas têm a função primordial de permitir à classe dominante manter seu domínio, alvo que não pode ser alcançado, por via do antagonismo de classes, senão mediante a organização sistemática e eficaz do monopólio da força; é por isso que cada Estado é, e não pode deixar de ser, uma ditadura. Neste sentido tornou-se já clássica a definição de Max Weber: "Por Estado se há de entender uma empresa institucional de caráter político onde o aparelho administrativo leva avante, em certa medida e com êxito, a pretensão do monopólio da legítima coerção física, com vistas ao cumprimento das leis" (1, 53). Esta definição tornou-se quase um lugar-comum da ciência política contemporânea.

Escreveram G. A. Almond e G. B. Powell num dos manuais de ciência política mais acreditados: "Estamos de acordo com Max Weber em que é a força física legítima que constitui o fio condutor da ação do sistema político, ou seja, lhe confere sua particular qualidade e importância, assim como sua coerência como sistema. As autoridades políticas, e somente elas, possuem o direito, tido como predominante, de usar a coerção e de impor a obediência apoiados nela. Quando falamos de sistema político, referimo-nos também a todas as interações respeitantes ao uso ou à ameaça de uso de coerção física legítima" (p. 55). A supremacia da força física como instrumento de poder em relação a todas as outras formas (das quais as mais importantes, afora a força física, são o domínio dos bens, que dá lugar ao poder econômico, e o domínio das idéias, que dá lugar ao poder ideológico) fica demonstrada ao considerarmos que, embora na maior parte dos Estados históricos o monopólio do poder coativo tenha buscado e encontrado seu apoio na imposição das idéias ("as idéias dominantes", segundo a bem conhecida afirmação de Marx, "são as idéias da classe dominante"), dos deuses pátrios à religião civil, do Estado confessional à religião de Estado, e na concentração e na direção das atividades econômicas principais, há todavia grupos políticos organizados que consentiram a desmonopolização do poder ideológico e do poder econômico; um exemplo disso está no Estado liberal-democrático, caracterizado pela liberdade de opinião, se bem que dentro de certos limites, e pela pluralidade dos centros de poder econômico. Não há grupo social organizado que tenha podido até hoje consentir a desmonopolização do poder coativo, o que significaria nada mais nada menos que o fim do Estado e que, como tal, constituiria um verdadeiro e autêntico salto qualitativo, à margem da história, para o reino sem tempo da utopia.

Conseqüência direta da monopolização da força no âmbito de um determinado território e relativas a um determinado grupo social, assim hão de ser consideradas algumas características comumente atribuídas ao poder político e que o diferenciam de toda e qualquer outra forma de poder: a exclusividade, a universalidade e a inclusividade. Por exclusividade se entende a tendência revelada pelos detentores do poder político ao não permitirem, no âmbito de seu domínio, a formação de grupos armados independentes e ao debelarem ou dispersarem os que porventura se vierem formando, assim como ao iludirem as infiltrações, as ingerências ou as agressões de grupos políticos do exterior. Esta característica distingue um grupo político organizado da "societas" de "latrones" (o "latrocinium" de que falava Agostinho). Por universalidade se entende a capacidade que têm os detentores do poder político, e eles sós, de tomar decisões legítimas e verdadeiramente eficazes para toda a coletividade, no concernente à distribuição e destinação dos recursos (não apenas econômicos). Por inclusividade se entende a possibilidade de intervir, de modo imperativo, em todas as esferas possíveis da atividade dos membros do grupo e de encaminhar tal atividade ao fim desejado ou de a desviar de um fim não desejado, por meio de instrumentos de ordenamento jurídico, isto é, de um conjunto de normas primárias destinadas aos membros do grupo e de normas secundárias destinadas a funcionários especializados, com autoridade para intervir em caso de violação daquelas. Isto não quer dizer que o poder político não se imponha limites. Mas são limites que variam de uma formação política para outra: um Estado autocrático estende o seu poder até à própria esfera religiosa, enquanto que o Estado laico pára diante dela; um Estado coletivista estenderá o próprio poder à esfera econômica, enquanto que o Estado liberal clássico dela se retrairá. O Estado todo abrangente, ou seja, o Estado a que nenhuma esfera da atividade humana escapa, é o Estado totalitário, que constitui, na sua natureza de caso-limite, a sublimação da Política, a politização integral das relações sociais.

V. O FIM DA POLÍTICA. Uma vez identificado o elemento específico da Política no meio de que se serve, caem as definições teleológicas tradicionais que tentam definir a Política pelo fim ou fins que ela persegue. A respeito do fim da Política, a única coisa que se pode dizer é que, se o poder político, justamente em virtude do monopólio da força, constitui o poder supremo num determinado grupo social, os fins que se pretende alcançar pela ação dos políticos são aqueles que, em cada situação, são considerados prioritários para o grupo (ou para a classe nele dominante): em épocas de lutas sociais e civis, por exemplo, será a unidade do Estado, a concórdia, a paz, a ordem pública, etc.; em tempos de paz interna e externa, será o bem-estar, a prosperidade ou a potência; em tempos de opressão por parte de um Governo despótico, será a conquista dos direitos civis e políticos; em tempos de dependência de uma potência estrangeira, a independência nacional. Isto quer dizer que a Política não tem fins perpetuamente estabelecidos, e muito menos um fim que os compreenda a todos e que possa ser considerado como o seu verdadeiro fim: os fins da Política são tantos quantas são as metas que um grupo organizado se propõe, de acordo com os tempos e circunstâncias. Esta insistência sobre o meio, e não sobre o fim, corresponde, aliás, à communis opinio dos teóricos do Estado, que excluem o fim dos chamados elementos constitutivos do mesmo. Fala mais uma vez por todos Max Weber: "Não é possível definir um grupo político, nem tampouco o Estado, indicando o alvo da sua ação de grupo. Não há nenhum escopo que os grupos políticos não se hajam alguma vez proposto... Só se pode, portanto, definir o caráter político de um grupo social pelo meio... que não lhe é certamente exclusivo, mas é, em todo o caso, específico e indispensável à sua essência: o uso da força" (1, 54).

Esta rejeição do critério teleológico não impede, contudo, que se possa falar corretamente, quando menos, de um fim mínimo na Política: a ordem pública nas relações internas e a defesa da integridade nacional nas relações de um Estado com os outros Estados. Este fim é o mínimo, porque é a conditio sine qua non para a consecução de todos os demais fins, conciliável, portanto, com eles. Até mesmo o partido que quer a desordem, a deseja, não como objetivo final, mas como fator necessário para a mudança da ordem existente e criação de uma nova ordem. Além disso, é lícito falar da ordem como fim mínimo da Política, porque ela é, ou deveria ser, o resultado imediato da organização do poder coativo, porque, por outras palavras, esse fim, a ordem, está totalmente unido ao meio, o monopólio da força: numa sociedade complexa, fundamentada na divisão do trabalho, na estratificação de categorias e classes, e em alguns casos também na justaposição de gentes e raças diversas, só o recurso à força impede, em última instância, a desagregação do grupo, o regresso, como diriam os antigos, ao Estado de natureza. Tanto é assim que, no dia em que fosse possível uma ordem espontânea, como a imaginaram várias escolas econômicas e políticas, dos fisiocratas aos anarquistas, ou os próprios Marx e Engels na fase do comunismo plenamente realizado, não haveria mais política propriamente falando.

Quem examinar as definições teleológicas tradicionais de Política, não tardará a observar que algumas delas não são definições descritivas, mas prescritivas, pois não definem o que é concreta e normalmente a Política, mas indicam como é que ela deveria ser para ser uma boa Política; outras diferem apenas nas palavras (as palavras da linguagem filosófica são não raro intencionadamente obscuras) da definição aqui apresentada. Toda história da filosofia política está repleta de definições normativas, a começar pela aristotélica: como é bem conhecido, Aristóteles afirma que o fim da Política não é viver, mas viver bem (Política, l278b). Mas em que consiste uma vida boa? Como é que ela se distingue de uma vida má? E, se uma classe política oprime os seus súditos, condenando-os a uma vida sofrida e infeliz, será que não faz Política, será que o poder que ela exerce não é um poder político? O próprio Aristóteles distingue as formas puras de Governo das formas deturpadas, coisa que já antes dele fizera Platão e haviam de fazer, durante vinte séculos, muitos outros escritores políticos: conquanto o que distingue as formas deturpadas das formas puras, seja que nestas a vida não é boa, nem Aristóteles, nem todos os escritores que lhe sucederam, lhes negaram nunca o caráter de constituições políticas. Não nos iludam outras teorias tradicionais que atribuem à Política fins diversos do da ordem, como o bem comum (o mesmo Aristóteles e, depois dele, o aristotelismo medieval) ou a justiça (Platão): um conceito como o de bem comum, quando o quisermos desembaraçar da sua extrema generalidade, pela qual pode significar tudo ou nada, e lhe quisermos atribuir um significado plausível, ele nada mais poderá designar senão aquele bem que todos os membros de um grupo partilham e que não é mais que a convivência ordenada, numa palavra, a ordem; pelo que toca à justiça platônica, se a entendermos, desvanecidos todos os fumos retóricos, como o princípio segundo o qual é bom que cada um faça o que lhe incumbe dentro da sociedade como um todo (República, 433a), justiça e ordem são a mesma coisa. Outras noções de fim, como felicidade, liberdade, igualdade, são demasiado controversas e interpretáveis dos modos mais díspares, para delas se poderem tirar indicações úteis para a identificação do fim específico da política.

Outro modo de fugir às dificuldades de uma definição teleológica de Política é o de a definir como uma forma de poder que não tem outro fim senão o próprio poder (onde o poder é, ao mesmo tempo, meio e fim, ou, como se diz, fim em si mesmo). "O caráter político da ação humana", escreve Mário Albertini, "torna-se patente, quando o poder se converte em fim, é buscado, em certo sentido, por si mesmo, e constitui o objeto de uma atividade específica" (p. 9), diversamente do que acontece com o médico, que exerce o próprio poder sobre o doente para o curar, ou com o rapaz que impõe seu jogo preferido aos companheiros, não pelo prazer de exercer o poder, mas de jogar. A este modo de definir a Política se poderá objetar que ele não define tanto uma forma específica de poder quanto uma maneira específica de o exercer, ajustando-se, por isso, igualmente bem a qualquer forma de poder, seja o poder econômico, seja o poder ideológico, seja qualquer outro poder. O poder pelo poder é um modo deturpado do exercício de qualquer forma de poder, que pode ter como sujeito tanto quem exerce o grande poder, qual o político, quanto quem exerce o pequeno, como o do pai de família ou o do chefe de seção que supervisiona uma dezena de operários. A razão pela qual pode parecer que o poder como fim em si mesmo seja característico da Política (mas seria mais exato dizer de um certo homem político, do homem maquiavélico), reside no fato de que não existe um fim tão específico na Política como o que existe no poder que o médico exerce sobre o doente ou no do rapaz que impõe o jogo aos seus companheiros. Se o fim da Política, e não do homem político maquiavélico, fosse realmente o poder pelo poder, a Política não serviria para nada. E provável que a definição da Política como poder pelo poder derive da confusão entre o conceito de poder e o de potência: não há dúvida de que entre os fins da Política está também o da potência do Estado, quando se considera a relação do próprio Estado com os outros Estados. Mas uma coisa é uma Política de potência e outra o poder pelo poder. Além disso, a potência não é senão um dos fins possíveis da Política, um fim que só alguns Estados podem razoavelmente perseguir.

VI. A POLÍTICA COMO RELAÇÃO AMIGO-INIMIGO. Entre as mais conhecidas e discutidas definições de Política, conta-se a de Carl Schmitt (retomada e desenvolvida por Julien Freund), segundo a qual a esfera da Política coincide com a da relação amigo-inimigo. Com base nesta definição, o campo de origem e de aplicação da Política seria o antagonismo e a sua função consistiria na atividade de associar e defender os amigos e de desagregar e combater os inimigos. Para dar maior força à sua definição, baseada numa oposição fundamental, amigo-inimigo, Schmitt a compara às definições de moral, de arte, etc., fundadas também em oposições fundamentais, como bom-mau, belo-feio, etc. "A distinção política específica a que é possível referir as ações e os motivos políticos, é a distinção de amigo e inimigo... Na medida em que não for derivável de outros critérios, ela corresponderá, para a Política, aos critérios relativamente autônomos das demais oposições: bom e mau para a moral, belo e feio para a estética, e por aí afora" (p. 105). Freund se expressa enfaticamente nestes termos: "Enquanto houver política, ela dividirá a coletividade em amigos e inimigos" (p. 448). E explica: "Quanto mais uma oposição se desenvolver no sentido da distinção amigo-inimigo, tanto mais ela se tornará política. É característico do Estado eliminar, dentro dos limites da sua competência, a divisão dos seus membros ou grupos internos em amigos e inimigos, não tolerando senão as simples rivalidades agonísticas ou as lutas dos partidos, e reservando ao Governo o direito de indicar o inimigo externo... É, pois, claro que a oposição amigo-inimigo é politicamente fundamental" (p. 445).

Não obstante pretender servir de definição global do fenômeno político, a definição de Schmitt considera a Política de uma perspectiva unilateral, se bem que importante, que é a daquele tipo particular de conflito que caracterizaria a esfera das ações políticas. Por outras palavras, Schmitt e Freund parecem estar de acordo nestes pontos: a Política tem que avir-se com os conflitos humanos; há vários tipos de conflitos, há principalmente conflitos agonísticos e antagonísticos; a Política cobre a área em que se desenrolam os conflitos antagonísticos. Que esta seja a perspectiva dos autores citados parece não caber dúvida. Escreve Schmitt: "A oposição política é a mais intensa e extrema de todas e qualquer outra oposição concreta será tanto mais política quanto mais se aproximar do ponto extremo, o do agrupamento baseado nos conceitos amigo-inimigo" (p. 112). De igual modo Freund: "Todo o desencontro de interesses. . . pode, em qualquer momento, transformar-se em rivalidade ou em conflito, e tal conflito, desde o momento que assuma o aspecto de uma prova de força entre os grupos que representam esses interesses, ou seja, desde o momento que se afirme como uma luta de poder, tornar-se-
á político" (p. 479). Como se vê pelas passagens citadas, o que têm em mente estes autores, quando definem a Política baseados na dicotomia amigo-inimigo, é que existem conflitos entre os homens e entre os grupos sociais, e que entre esses conflitos há alguns diferentes de todos os outros pela sua particular intensidade; é a esses que eles dão o nome de conflitos políticos. Mas, quando se procura compreender em que é que consiste essa particular intensidade e, por conseguinte, em que é que a relação amigo-inimigo se distingue de todas as outras relações conflitantes de intensidade não igual, logo se nota que o elemento distintivo está em que se trata de conflitos que, em última instância, só podem ser resolvidos pela força ou justificam, pelo menos, o uso da força pelos contendores para pôr fim à luta. O conflito por excelência de que tanto Schmitt como Freund extrapolaram sua definição de Política, é a guerra, cujo conceito compreende tanto a guerra externa quanto a interna. Ora, se uma coisa é certa, é que a guerra constitui uma espécie de conflito eminentemente caracterizado pelo uso da força. Mas, se isso é verdade, a definição de Política em termos de amigo-inimigo não é de modo algum incompatível com a definição antes apresentada, que se refere ao monopólio da força. Não só não é incompatível, como é uma especificação da mesma e, em última análise, sua confirmação. É justamente na medida em que o poder político se distingue do instrumento de que se serve para atingir os próprios fins e em que tal instrumento é a força física, que ele é o poder a que se recorre para resolver os conflitos cuja não solução acarretaria a decomposição do Estado e da ordem internacional: são os conflitos em que, confrontados os contendores como inimigos, a vita mea é a mors tua.

VII. O POLÍTICO E O SOCIAL. Contrastando com a tradição clássica, segundo a qual a esfera da Política, entendida como esfera do que diz respeito à vida da pólis, compreende toda a sorte de relações sociais, tanto que o "político" vem a coincidir com o "social", a doutrina exposta sobre a categoria da Política é certamente limitativa: reduzir, como se fez, a categoria da Política à atividade direta ou indiretamente relacionada com a organização do poder coativo é restringir o âmbito do "político" quanto ao "social", é rejeitar a plena coincidência de um com o outro. Esta limitação baseia-se numa razão histórica bem-definida. De um lado, o cristianismo subtraiu à esfera da Política o domínio da vida religiosa, dando origem à contraposição do poder espiritual ao poder temporal, o que era desconhecido do mundo antigo. De outro, com o surgir da economia mercantil burguesa, foi subtraído à esfera da Política o domínio das relações econômicas, originando-se a contraposição (para usarmos a terminologia hegeliana, herdada de Marx e hoje de uso comum) da sociedade civil à sociedade política, da esfera privada ou do burguês à esfera pública ou do cidadão, coisa que também era ignorada do mundo antigo. Enquanto a filosofia política clássica se baseia no estudo da estrutura da pólis e das suas variadas formas históricas ou ideais, a filosofia política pós-clássica se caracteriza pela contínua busca de uma delimitação do que é político (o reino de César) do que não é político (quer seja o reino de Deus, quer seja o de Mammona), por uma contínua reflexão sobre o que distingue a esfera da Política da esfera da não-Política, o Estado do não-Estado, onde por esfera da não-Política ou do não-Estado se entende, conforme as circunstâncias, ora a sociedade religiosa (a ecclesia contraposta à civitas), ora a sociedade natural (o mercado como lugar em que os indivíduos se encontram independentemente de qualquer imposição, contraposto ao ordenamento coativo do Estado). O tema fundamental da filosofia política moderna é o tema dos limites, umas vezes mais restritos, outras vezes mais amplos conforme os autores e as escolas, do Estado como organização da esfera política, seja em relação à sociedade religiosa, seja em relação à sociedade civil (entendida como sociedade burguesa ou dos privados).

É exemplar também sob este aspecto a teoria política de Hobbes, articulada em torno de três conceitos fundamentais que constituem as três partes em que se divide a matéria do De Cive. Estas partes são assim denominadas: libertas, potestas, religio. O problema fundamental do Estado e, por conseguinte, da Política é, para Hobbes, o problema das relações entre a potestas simbolizada no grande Leviatã, por um lado, e a libertas e a religio, por outro: a libertas designa o espaço das relações naturais, onde se desenvolve a atividade econômica dos indivíduos, estimulada pela incessante disputa pela posse dos bens materiais, o Estado de natureza (interpretado recentemente como prefiguração da sociedade de mercado); a religio indica o espaço reservado à formação e expansão da vida espiritual, cuja concretização histórica se dá na instituição da Igreja, isto é, duma sociedade que, por sua natureza, se distingue da sociedade política e não pode ser com ela confundida. Relacionados com esta dupla delimitação dos confins da Política, surgem na filosofia política moderna dois tipos ideais de Estado: o Estado absoluto e o Estado liberal, aquele com tendência a estender, este com tendência a limitar a própria ingerência em relação à sociedade econômica e à sociedade religiosa. Na filosofia política do século passado, o processo de emancipação da sociedade quanto ao Estado avançou tanto que, por primeira vez, foi por muitos aventada a hipótese da desaparição do Estado num futuro mais ou menos remoto e da conseqüente absorção do político pelo social, ou seja, do fim da Política. Conforme o que se disse até aqui sobre o significado restritivo de Política (restritivo em relação ao conceito mais amplo de "social"), fim da Política significa exatamente fim de uma sociedade para cuja coesão sejam indispensáveis as relações de poder político, isto é relações de domínio fundadas, em última instância, no uso da força. Fim da Política não significa, bem entendido, fim de toda a forma de organização social. Significa, pura e simplesmente, fim daquela forma de organização social que se rege pelo uso exclusivo do poder coativo.

VIII. POLÍTICA E MORAL. Ao problema da relação entre Política e não-Política, está vinculado um dos problemas fundamentais da filosofia política, o problema da relação entre Política e moral. A Política e a moral estendem-se pelo mesmo domínio comum, o da ação ou da práxis humana. Pensa-se que se distinguem entre si em virtude de um princípio ou critério diverso de justificação e avaliação das respectivas ações, e que, em conseqüência disso, o que é obrigatório em moral, não se pode dizer que o seja em Política, e o que é lícito em Política, não se pode dizer que o seja em moral; pode haver ações morais que são impolíticas (ou apolíticas) e ações políticas que são imorais (ou amorais). A descoberta da distinção que é atribuída, injustificada ou justificadamente a Maquiavel (daí o nome de maquiavelismo dado a toda a teoria política que sustenta e defende a separação da Política da moral), é geralmente apresentada como problema da autonomia da Política. Este problema acompanha pari passu a formação do Estado moderno e sua gradual emancipação da Igreja, que chegou até, em casos extremos, à subordinação desta ao Estado e, conseqüentemente, à absoluta supremacia da Política. Na realidade, o que se chama autonomia da Política não é outra coisa senão o reconhecimento de que o critério segundo o qual se julga boa ou má uma ação política (não se esqueça que, por ação política, se entende, em concordância com o que se disse até aqui, uma ação que tem por sujeito ou objeto a pólis) é diferente do critério segundo o qual se considera boa ou má uma ação moral. Enquanto o critério segundo o qual se julga uma ação moralmente boa ou má é o do respeito a uma norma cuja preceituação é tida por categórica, independentemente do resultado da ação ("faz o que deves, aconteça o que acontecer"), o critério segundo o qual se julga uma ação politicamente boa ou má é pura e simplesmente o do resultado ("faz o que deves, a fim de que aconteça o que desejas"). Ambos os critérios são incomensuráveis. Esta incomensurabilidade está expressa na afirmação de que, em Política, o que vale é a máxima de que "o fim justifica os meios", máxima que encontrou em Maquiavel uma das suas mais fortes expressões: "... e nas ações de todos os homens, e máxime dos príncipes, quando não há indicação à qual apelar, se olha ao fim. Faça, pois, o príncipe por vencer e defender o Estado: os meios serão sempre considerados honrosos e por todos louvados" (Príncipe, XVIII). Mas, em moral, a máxima maquiavélica não vale, já que uma ação, para ser julgada moralmente boa, há de ser praticada não com outro fim senão o de cumprir o próprio dever.

Uma das mais convincentes interpretações desta oposição é a distinção weberiana entre ética da convicção e ética da responsabilidade: "... há uma diferença insuperável entre o agir segundo a máxima da ética da convicção, que em termos religiosos soa assim: 'O cristão age como justo e deixa o resultado nas mãos de Deus', e o agir segundo a máxima da ética da responsabilidade, conforme a qual é preciso responder pelas conseqüências previsíveis das próprias ações" (La política come professione, in II lavoro intellettuale come professione, Torino, 1948, p. 142). O universo da moral e o da Política movem-se no âmbito de dois sistemas éticos diferentes e até mesmo contrapostos. Mais que de imoralidade da Política e de impoliticidade da moral se deveria mais corretamente falar de dois universos éticos que se movem segundo princípios diversos, de acordo com as diversas situações em que os homens se encontram e agem. Destes dois universos éticos são representantes outros tantos personagens diferentes que atuam no mundo seguindo caminhos quase sempre destinados a não se encontrarem: de um lado está o homem de fé, o profeta, o pedagogo, o sábio que tem os olhos postos na cidade celeste, do outro, o homem de Estado, o condutor de homens, o criador da cidade terrena. O que conta para o primeiro é a pureza de intenções e a coerência da ação com a intenção; para o segundo o que importa é a certeza e fecundidade dos resultados. A chamada imoralidade da Política assenta, bem vistas as coisas, numa moral diferente da do dever pelo dever: é a moral pela qual devemos fazer tudo o que está ao nosso alcance para realizar o fim que nos propusemos, pois sabemos, desde início, que seremos julgados com base no sucesso. Entram aqui dois conceitos de virtude, o clássico, para o qual "virtude" significa disposição para o bem moral (contraposto ao útil), e o maquiavélico, para o qual a virtude é a capacidade do príncipe forte e sagaz que, usando conjuntamente das artes da raposa e do leão, triunfa no intento de manter e consolidar o próprio domínio.

IX. A POLÍTICA COMO ÉTICA DO GRUPO. Quem não quiser ficar apenas na constatação da incomensurabilidade destas duas éticas e queira procurar entender a razão pela qual o que é justificado num certo contexto não o é em outro, deve perguntar ainda onde é que reside a diferença entre esses dois contextos. A resposta é a seguinte: o critério da ética da convicção é geralmente usado para julgar as ações individuais, enquanto o critério da ética da responsabilidade se usa ordinariamente para julgar ações de grupo, ou praticadas por um indivíduo, mas em nome e por conta do próprio grupo, seja ele o povo, a nação, a Igreja, a classe, o partido, etc. Poder-se-á também dizer, por outras palavras, que, à diferença entre moral e Política, ou entre ética da convicção e ética da responsabilidade, corresponde também a diferença entre ética individual e ética de grupo. A proposição de que o que é obrigatório em moral não se pode dizer que o seja em Política, poderá ser traduzida por esta outra fórmula: o que é obrigatório para o indivíduo não se pode dizer que o seja para o grupo de que o indivíduo faz parte. Pensemos quão profunda é a diferença de juízo dos filósofos, teólogos e moralistas acerca da violência, quando o ato violento é praticado só pelo indivíduo ou pelo grupo social de que ele faz parte, ou, por outras palavras, quando se trata de violência pessoal que, afora os casos excepcionais, é geralmente condenada, e quando se trata de violência das instituições que, afora os casos excepcionais, é geralmente justificada. Esta diferença tem a sua explicação no fato de que, no caso de violência individual, não se pode recorrer quase nunca ao critério de justificação da extrema ratio (salvo quando em legítima defesa), ao passo que, nas relações entre grupos, o recurso à justificação da violência como extrema ratio é usual. Ora, a razão por que a violência individual não se justifica funda-se precisamente no fato de que ela está, por assim dizer, protegida pela violência coletiva, tanto que é cada vez mais raro, quase impossível, que o indivíduo se venha a encontrar na situação de ter de recorrer à violência como extrema ratio. Se isto é verdadeiro, resultará daqui uma conseqüência importante: a não justificação da violência individual assenta, em última instância, no fato de ser aceita, porque justificada, a violência coletiva. Por outras palavras, não há necessidade da violência individual, porque basta a violência coletiva: a moral pode resolver ser tão severa com a violência individual, porque se fundamenta na aceitação de uma convivência que se rege pela prática contínua da violência coletiva.

O contraste entre moral e Política, entendido como contraste entre ética individual e ética de grupo, serve também para ilustrar e explicar a secular disputa existente em torno à "razão de Estado". Por "razão de Estado" se entende aquele conjunto de princípios e máximas segundo os quais ações que não seriam justificadas, se praticadas só pelo indivíduo, são não só justificadas como também por vezes exaltadas e glorificadas se praticadas pelo príncipe ou por quem quer que exerça o poder em nome do Estado. Que o Estado tenha razões que o indivíduo não tem ou não pode fazer valer é outro dos modos de evidenciar a diferença entre Política e moral, quando tal diferença se refere aos diversos critérios segundo os quais se consideram boas ou más as ações desses dois campos. A afirmação de que a Política é a razão do Estado encontra perfeita correspondência na afirmação de que a moral é a razão do indivíduo. São duas razões que quase nunca se encontram: é até desse contraste que se tem valido a história secular do conflito entre moral e Política. O que ainda é necessário acrescentar é que a razão de Estado não é senão um aspecto da ética de grupo, conquanto o mais evidente, quando menos porque o Estado é a coletividade em seu mais alto grau de expressão e de potência. Sempre que um grupo social age em própria defesa contra outro grupo, se apela a uma ética diversa da geralmente válida para os indivíduos, uma ética que responde à mesma lógica da razão de Estado. Assim, ao lado da razão de Estado, a história nos aponta, consoante as circunstâncias de tempo e lugar, ora uma razão de partido, ora uma razão de classe ou de nação, que representam, sob outro nome, mas com a mesma força e as mesmas conseqüências, o princípio da autonomia da Política, entendida como autonomia dos princípios e regras de ação que valem para o grupo como totalidade, em confronto com as que valem para o indivíduo dentro do grupo.

Um comentário: