DICIONÁRIO DE POLÍTICA
Legitimidade
I. Definição geral. Na linguagem comum, o termo Legitimidade possui dois significados: um genérico e um específico. No seu significado genérico, Legitimidade tem, aproximadamente, o sentido de justiça ou de racionalidade (fala-se na Legitimidade de uma decisão, de uma atitude, etc.). É na linguagem política que aparece o significado específico. Nesse contexto, o Estado é o ente a que mais se refere o conceito de Legitimidade. O que nos interessa, aqui, é a preocupação com o significado específico.
Num primeiro enfoque aproximado, podemos definir Legitimidade como sendo um atributo do Estado, que consiste na presença, em uma parcela significativa da população, de um grau de consenso capaz de assegurar a obediência sem a necessidade de recorrer ao uso da força, a não ser em casos esporádicos. É por essa razão que todo poder busca alcançar consenso, de maneira que seja reconhecido como legítimo, transformando a obediência em adesão. A crença na Legitimidade é, pois, o elemento integrador na relação de poder que se verifica no âmbito do Estado.
II. Os níveis do processo de legitimação. Encarando o Estado sob o enfoque sociológico e não jurídico, constatamos que o processo de legitimação não tem como ponto de referência o Estado no seu conjunto, e sim nos seus diversos aspectos: a comunidade política, o regime, o Governo e, não sendo o Estado independente, o Estado hegemônico a quem o mesmo se acha subordinado. Conseqüentemente, a legitimação do Estado é o resultado de um conjunto de variáveis que se situam em níveis crescentes, cada uma delas cooperando, de maneira relativamente independente, para sua determinação. É, pois, necessário examinar separadamente as características dessas variáveis que constituem o ponto de referência da crença na Legitimidade.
a) A comunidade política é o grupo social, com base territorial, que congrega os indivíduos unidos pela divisão do trabalho político. Esse aspecto do Estado é objeto da crença na Legitimidade, quando encontramos na população sentimentos difusos de identificação com a comunidade política. No Estado nacional, a crença na Legitimidade é caracterizada, com maior evidência, por atitudes de fidelidade à comunidade política e de lealdade nacional.
b) O regime é o conjunto de instituições que regulam a luta pelo poder e o exercício do poder e o conjunto dos valores que animam a vida dessas instituições. Os princípios monárquico, democrático, socialista, fascista, etc., caracterizam alguns tipos de instituições, e dos valores correspondentes, que se caracterizam como alicerces da Legitimidade do regime. A característica fundamental da adesão a um regime, principalmente quando tem seu fundamento na crença da legalidade, está no fato de que os governantes e sua política são aceitos, na medida em que os aspectos fundamentais do regime são legitimados, abstraindo das pessoas e das decisões políticas específicas. A conseqüência é que quem legitima o regime tem que aceitar também o Governo que veio a se concretizar e que busca atuar de acordo com as normas e os valores do regime, mesmo não o aprovando ou até chegando a lhe fazer oposição bem como à sua política. Isto depende do fato de que existe um interesse concreto que une as forças que aceitam o regime: a sustentação das instituições que regulam a luta pelo poder. O fundamento desta convergência de interesses está em que o regime é assumido como plataforma comum de luta entre os grupos políticos, visto estes o considerarem como uma situação que apresenta condições favoráveis para a manutenção de seu poder, para a conquista do Governo e para a concretização parcial ou total de seus objetivos políticos.
c) O Governo é o conjunto dos papéis em que se concretiza o exercício do poder político. Vimos que normalmente, isto é, quando a força do Governo repousa na definição institucional do poder, para ele ser qualificado como legítimo é suficiente que tenha se estruturado de conformidade com as normas do regime e que exerça o poder de acordo com os mesmos, de tal forma que se achem respeitados determinados valores fundamentais da vida política. Todavia, pode acontecer que a pessoa que chefia o Governo seja ela mesma objeto da crença na Legitimidade. No Estado moderno, isso acontece quando as instituições políticas se encontram em crise e os únicos fundamentos da Legitimidade do poder são a superioridade, o prestígio e as qualidades pessoais de quem se encontra no vértice da hierarquia do Estado. Encontra-se, em todos os regimes, embora em diferentes medidas, uma certa dose de personalização do poder; como conseqüência desse fato, os homens nunca permitem que o papel desenvolvido pelos seus chefes os faça esquecer suas qualidades pessoais. O que é essencial, porém, para distinguir o poder legal e o tradicional do poder pessoal ou carismático (esta célebre tripartição é de Max Weber) é isto: a Legitimidade do primeiro tipo de poder tem seu fundamento na crença de que são legais as normas do regime, estabelecidas propositalmente e de maneira racional, e que legal também é o direito de comando dos que detêm o poder com base nas mesmas normas; a Legitimidade do segundo tipo assenta no respeito às instituições consagradas pela tradição e à pessoa ou às pessoas que detêm o poder, cujo direito de comando é conferido pela tradição; a Legitimidade do terceiro tipo tem seus alicerces substancialmente nas qualidades pessoais do chefe e, somente de forma secundária, nas instituições. Esse tipo de Legitimidade, pela sua ligação com a pessoa do chefe, tem existência efêmera, por não resolver o problema fundamental para a continuidade das instituições políticas, isto é, o problema da transmissão do poder.
d) Só nos resta examinar o caso do Estado, que, por não ser independente, não está em condição de cumprir sua missão primordial de garantir a segurança dos cidadãos (e até o próprio desenvolvimento econômico). Não temos, neste caso, um Estado no sentido pleno da palavra, e sim um país conquistado, uma colônia, um protetorado ou um satélite de uma potência imperial ou hegemônica. Uma comunidade política que se acha nesta situação encontra grandes dificuldades para despertar a lealdade dos cidadãos por não ser um centro de decisões autônomas. Conseqüentemente, sua Legitimidade encontrará suas bases de apoio, inteira ou parcialmente, na Legitimidade do sistema hegemônico ou imperial em que se acha inserida. O ponto de referência da crença na Legitimidade será, neste caso, inteira ou parcialmente, a potência hegemônica ou imperial.
III. Legitimação e contestação da legitimidade. Os diferentes níveis do processo de legitimação determinam os elementos que se caracterizam como ponto de referência obrigatório para a orientação de indivíduos e grupos, no contexto político. Analisando, sob esse enfoque, a ação de grupos e indivíduos, podemos discriminar dois tipos básicos de comportamento. Quando o fundamento e os fins do poder são percebidos como compatíveis ou de acordo com o próprio sistema de crenças e quando o agir é orientado para a manutenção dos aspectos básicos da vida política, o comportamento de indivíduos e grupos pode ser definido como legitimação. Quando, ao contrário, o Estado é percebido, na sua estrutura e nos seus fins, como estando em contradição com o próprio sistema de crenças, e se este julgamento negativo se transformar numa ação que busque modificar os aspectos básicos da vida política, então esse comportamento poderá ser definido como contestação da Legitimidade.
O comportamento de legitimação não se aplica somente às forças que sustentam o Governo, mas também às que a ele se opõem, na medida em que não têm como finalidade a mudança também do regime ou da comunidade política. A aceitação das "regras do jogo", isto é, das normas que servem de sustentação ao regime, implica não apenas, como já foi salientado, a aceitação do Governo e de suas ordens, mas também a legítima aspiração, para a oposição, de se transformar em Governo.
A diferença entre oposição ao Governo e contestação da Legitimidade corresponde, num certo sentido, à existente entre política reformista e política revolucionária. O primeiro tipo de luta busca alcançar mudanças, mantendo de pé as estruturas políticas existentes, combate o Governo, mas não combate as estruturas que condicionam sua ação e, enfim, propõe uma diferente maneira para a gestão do sistema estabelecido. O segundo tipo de luta se dirige contra a ordem constituída, tendo como objetivo a modificação substancial de alguns aspectos fundamentais; não combate apenas o Governo, mas também o sistema de Governo, isto é, as estruturas que ele exprime.
A esta altura, estamos já examinando o comportamento de contestação da Legitimidade. Precisamos, nesse campo, distinguir entre duas atitudes: a de revolta e a revolucionária. A atitude de revolta se limita à simples negação, à rejeição abstrata da realidade social, sem determinar historicamente a própria negação e a própria rejeição. Conseqüentemente, não consegue captar o movimento histórico da sociedade, nem perceber objetivos concretos de luta, e acaba aprisionando-se numa realidade que não consegue alterar. A atitude revolucionária produz, ao contrário, uma negação, historicamente determinada, da realidade social. Seu grande problema é sempre o de encontrar formas concretas de luta, nascidas do movimento histórico real, que possibilitem realizar as transformações possíveis da sociedade. Isto significa que a ação revolucionária não terá nunca o objetivo de modificar radicalmente a sociedade, e, sim, buscará a derrubada das instituições políticas que dificultam seu desenvolvimento e a criação de novas instituições capazes de libertar as tendências amadurecidas na sociedade para formas mais elevadas de convivência. No momento de escolher um método legal ou ilegal para a realização dos objetivos revolucionários, esse problema é abordado como algo a ser resolvido nas diferentes fases da luta, sempre em função da utilidade e eficácia de cada ação para a consecução dos objetivos. A estratégia escolhida precisa estar de acordo com as circunstâncias históricas em que a luta acontece, circunstâncias essas que não podem ser objeto de escolha.
Observe-se, finalmente, que a contestação da Legitimidade pode ter uma conotação tanto de esquerda quanto de direita. São disso um exemplo as oposições fascista e nazista aos regimes democráticos na Itália e na França, e também a oposição nacionalista contra o movimento de unificação européia.
IV. Estrutura política e social, crença na legitimidade e ideologia. A influência exercida pelo consenso dos membros de uma comunidade política na legitimação do Estado, seja ele qual for, mesmo o mais democrático, não tem, de maneira alguma, sempre o mesmo peso. O povo não é um somatório abstrato de indivíduos, cada qual participando diretamente com igual fatia de poder no controle do Governo e no processo de elaboração das decisões políticas, como aparenta a ficção jurídica da ideologia democrática. As relações sociais não subsistem entre indivíduos totalmente autônomos, mas entre indivíduos inseridos num contexto, que desempenham um papel definido pela divisão social do trabalho. Ora, a divisão do trabalho e a luta social e política dela decorrente fazem com que a sociedade nunca seja pensada através de representações que correspondem à realidade, mas através de uma imagem deformada pelos interesses dos protagonistas desta luta (a ideologia), cuja função é a de legitimar o poder constituído Não se trata de uma representação totalmente ilusória da realidade, nem de uma simples mentira. Toda ideologia e todo princípio de Legitimidade do poder, para se justificarem eficazmente, precisam conter também elementos descritivos, que os tornem dignos de confiança e, conseqüentemente, idôneos para produzir o fenômeno do consenso. Por isso, quando as crenças que sustentam o poder não correspondem mais à realidade social, são deixadas de lado e assistimos à mudança histórica das ideologias.
Quando o poder é firme e em condição de desempenhar, de maneira progressista ou conservadora, suas funções essenciais (defesa, desenvolvimento econômico, etc.), faz com que seja aceita a justificação de seu existir, apelando para determinadas exigências latentes nas massas, e com a força de sua própria presença acaba se criando o consenso necessário. Nos períodos de estabilidade política e social, a influência, na formação da consciência social, dos que a divisão do trabalho colocou no vértice da sociedade é determinante, visto estarem eles em condições de condicionar, de maneira relevante, o comportamento dos que não desempenham papéis privilegiados. Para esta última categoria de pessoas, a realidade do Estado se manifesta, sobremaneira, imponente, a experiência que fazem do Estado os leva a encará-lo como algo relacionado com as forças da própria natureza ou como sendo condição necessária e imutável do viver em comum. Por outro lado, para se adaptar à dura realidade de sua condição social, a pessoa comum sente-se impulsionada a idealizar sua passividade e seus sacrifícios em nome de princípios absolutos capazes de fornecer realidade ao desejo e verdade à esperança.
Quando, ao contrário, o poder está em crise, por ter sua estrutura entrado em contradição com a evolução da sociedade entra em crise também o princípio da Legitimidade que o justifica. Isto ocorre porque, nas fases revolucionárias, ou seja, quando a estrutura do poder desmorona, caem também os véus ideológicos que camuflavam ao povo a realidade do poder, e se manifesta às claras sua inadequação para resolver os problemas que amadurecem na sociedade. Neste momento, a consciência das massas entra em contradição com a estrutura política da sociedade; todos se tornam politicamente ativos, por serem simples as opções e por envolverem diretamente as pessoas comuns; o poder de decisão se encontra, de fato, nas mãos de todos. Naturalmente, fenômenos dessa ordem acontecem até a hora em que surge um outro poder e, conseqüentemente, um outro princípio de Legitimidade. A experiência histórica mostra que a cada tipo de Estado corresponde um diferente tipo de Legitimidade, isto é: a cada maneira de lutar pelo poder corresponde uma diferente ideologia dominante.
V. Aspecto de valor da legitimidade. O consenso em relação ao Estado nunca foi (nem é) livre, ao contrário, sempre foi (e é), pelo menos em parte, forçado e manipulado. Normalmente, a legitimação se apresenta como uma necessidade, seja qual for o tipo de Estado. Inúmeras pesquisas sociológicas provaram, por exemplo, que o fenômeno da manipulação do consenso existe também nos países democráticos. Ora, uma vez que o poder é o determinante, pelo menos parcial, do conteúdo do consenso e que, conseqüentemente, podem existir nele diferentes níveis de liberdade e de coação, não parece justo caracterizar como legítimo, nem um Estado democrático, nem um Estado tirânico, pelo simples fato de que em ambos se manifesta a aceitação do sistema.
Se nos limitarmos a definir legítimo um Estado cujos valores e estruturas fundamentais são aceitos, acabaremos por englobar nesta formulação também o contrário do que normalmente se entende por consenso: o consenso imposto e o caráter ideológico de seu conteúdo. A definição geral proposta no início acabou, pois, por se revelar insatisfatória, uma vez que pode ser aplicada a qualquer conteúdo. Para superar tal incongruência, que parece invalidar a própria exatidão semântica da definição descritiva, faz-se necessário evidenciar uma característica que o termo Legitimidade tem em comum com muitos outros termos da linguagem política (liberdade, democracia, justiça, etc.): o termo Legitimidade designa, ao mesmo tempo, uma situação e um valor de convivência social. A situação a que o termo se refere é a aceitação do Estado por um segmento relevante da população; o valor é o consenso livremente manifestado por uma comunidade de homens autônomos e conscientes. O sentido da palavra Legitimidade não é estático, e, sim, dinâmico; é uma unidade aberta, cuja concretização é considerada possível num futuro indefinido, e a realidade concreta nada mais é do que um esboço desse futuro. Em cada manifestação histórica da Legitimidade, vislumbra-se a promessa, até agora sempre incompleta na sua manifestação, de uma sociedade justa, onde o consenso, que dela é a essência, possa se manifestar livremente sem a interferência do poder ou da manipulação e sem mistificações ideológicas. Antecipamos, assim, quais as condições sociais que possibilitam a aproximação à plena realização do valor inerente ao conceito de Legitimidade: a tendência ao desaparecimento do poder, quer das relações sociais, quer do elemento psicológico a ele associado: a ideologia.
O critério que possibilita a discriminação dos diferentes tipos de consenso parece, pois, consistir na variação dos graus de deformação ideológica a que é sujeita a crença na Legitimidade e no correspondente e diverso grau de manipulação a que essa crença é submetida. Com base nesse critério, é possível provar que não são iguais todos os tipos de consenso e que será mais legítimo o Estado onde o consenso tem condições de ser manifestado mais livremente, onde, em suma, for bem menor a interferência do poder e da manipulação e, portanto, bem menor o grau de deformação ideológica da realidade social na mente dos indivíduos. O consenso será, pois, mais aparente, e conseqüentemente de pouca consistência real, na medida em que for forçado e tiver um caráter ideológico. Com esse ponto de partida, podemos formular uma nova definição de Legitimidade que nos permita superar as limitações e incongruências da que foi proposta no início. Trata-se fundamentalmente de integrar na definição o aspecto de valor, elemento constitutivo do fenômeno. Podemos, pois, afirmar que a Legitimidade do Estado é uma situação nunca plenamente concretizada na história, a não ser como aspiração, e que um Estado será mais ou menos legítimo na medida em que torna real o valor de um consenso livremente manifestado por parte de uma comunidade de homens autônomos e conscientes, isto é, na medida em que consegue se aproximar à idéia limite da eliminação do poder e da ideologia nas relações sociais.
Legitimidade
I. Definição geral. Na linguagem comum, o termo Legitimidade possui dois significados: um genérico e um específico. No seu significado genérico, Legitimidade tem, aproximadamente, o sentido de justiça ou de racionalidade (fala-se na Legitimidade de uma decisão, de uma atitude, etc.). É na linguagem política que aparece o significado específico. Nesse contexto, o Estado é o ente a que mais se refere o conceito de Legitimidade. O que nos interessa, aqui, é a preocupação com o significado específico.
Num primeiro enfoque aproximado, podemos definir Legitimidade como sendo um atributo do Estado, que consiste na presença, em uma parcela significativa da população, de um grau de consenso capaz de assegurar a obediência sem a necessidade de recorrer ao uso da força, a não ser em casos esporádicos. É por essa razão que todo poder busca alcançar consenso, de maneira que seja reconhecido como legítimo, transformando a obediência em adesão. A crença na Legitimidade é, pois, o elemento integrador na relação de poder que se verifica no âmbito do Estado.
II. Os níveis do processo de legitimação. Encarando o Estado sob o enfoque sociológico e não jurídico, constatamos que o processo de legitimação não tem como ponto de referência o Estado no seu conjunto, e sim nos seus diversos aspectos: a comunidade política, o regime, o Governo e, não sendo o Estado independente, o Estado hegemônico a quem o mesmo se acha subordinado. Conseqüentemente, a legitimação do Estado é o resultado de um conjunto de variáveis que se situam em níveis crescentes, cada uma delas cooperando, de maneira relativamente independente, para sua determinação. É, pois, necessário examinar separadamente as características dessas variáveis que constituem o ponto de referência da crença na Legitimidade.
a) A comunidade política é o grupo social, com base territorial, que congrega os indivíduos unidos pela divisão do trabalho político. Esse aspecto do Estado é objeto da crença na Legitimidade, quando encontramos na população sentimentos difusos de identificação com a comunidade política. No Estado nacional, a crença na Legitimidade é caracterizada, com maior evidência, por atitudes de fidelidade à comunidade política e de lealdade nacional.
b) O regime é o conjunto de instituições que regulam a luta pelo poder e o exercício do poder e o conjunto dos valores que animam a vida dessas instituições. Os princípios monárquico, democrático, socialista, fascista, etc., caracterizam alguns tipos de instituições, e dos valores correspondentes, que se caracterizam como alicerces da Legitimidade do regime. A característica fundamental da adesão a um regime, principalmente quando tem seu fundamento na crença da legalidade, está no fato de que os governantes e sua política são aceitos, na medida em que os aspectos fundamentais do regime são legitimados, abstraindo das pessoas e das decisões políticas específicas. A conseqüência é que quem legitima o regime tem que aceitar também o Governo que veio a se concretizar e que busca atuar de acordo com as normas e os valores do regime, mesmo não o aprovando ou até chegando a lhe fazer oposição bem como à sua política. Isto depende do fato de que existe um interesse concreto que une as forças que aceitam o regime: a sustentação das instituições que regulam a luta pelo poder. O fundamento desta convergência de interesses está em que o regime é assumido como plataforma comum de luta entre os grupos políticos, visto estes o considerarem como uma situação que apresenta condições favoráveis para a manutenção de seu poder, para a conquista do Governo e para a concretização parcial ou total de seus objetivos políticos.
c) O Governo é o conjunto dos papéis em que se concretiza o exercício do poder político. Vimos que normalmente, isto é, quando a força do Governo repousa na definição institucional do poder, para ele ser qualificado como legítimo é suficiente que tenha se estruturado de conformidade com as normas do regime e que exerça o poder de acordo com os mesmos, de tal forma que se achem respeitados determinados valores fundamentais da vida política. Todavia, pode acontecer que a pessoa que chefia o Governo seja ela mesma objeto da crença na Legitimidade. No Estado moderno, isso acontece quando as instituições políticas se encontram em crise e os únicos fundamentos da Legitimidade do poder são a superioridade, o prestígio e as qualidades pessoais de quem se encontra no vértice da hierarquia do Estado. Encontra-se, em todos os regimes, embora em diferentes medidas, uma certa dose de personalização do poder; como conseqüência desse fato, os homens nunca permitem que o papel desenvolvido pelos seus chefes os faça esquecer suas qualidades pessoais. O que é essencial, porém, para distinguir o poder legal e o tradicional do poder pessoal ou carismático (esta célebre tripartição é de Max Weber) é isto: a Legitimidade do primeiro tipo de poder tem seu fundamento na crença de que são legais as normas do regime, estabelecidas propositalmente e de maneira racional, e que legal também é o direito de comando dos que detêm o poder com base nas mesmas normas; a Legitimidade do segundo tipo assenta no respeito às instituições consagradas pela tradição e à pessoa ou às pessoas que detêm o poder, cujo direito de comando é conferido pela tradição; a Legitimidade do terceiro tipo tem seus alicerces substancialmente nas qualidades pessoais do chefe e, somente de forma secundária, nas instituições. Esse tipo de Legitimidade, pela sua ligação com a pessoa do chefe, tem existência efêmera, por não resolver o problema fundamental para a continuidade das instituições políticas, isto é, o problema da transmissão do poder.
d) Só nos resta examinar o caso do Estado, que, por não ser independente, não está em condição de cumprir sua missão primordial de garantir a segurança dos cidadãos (e até o próprio desenvolvimento econômico). Não temos, neste caso, um Estado no sentido pleno da palavra, e sim um país conquistado, uma colônia, um protetorado ou um satélite de uma potência imperial ou hegemônica. Uma comunidade política que se acha nesta situação encontra grandes dificuldades para despertar a lealdade dos cidadãos por não ser um centro de decisões autônomas. Conseqüentemente, sua Legitimidade encontrará suas bases de apoio, inteira ou parcialmente, na Legitimidade do sistema hegemônico ou imperial em que se acha inserida. O ponto de referência da crença na Legitimidade será, neste caso, inteira ou parcialmente, a potência hegemônica ou imperial.
III. Legitimação e contestação da legitimidade. Os diferentes níveis do processo de legitimação determinam os elementos que se caracterizam como ponto de referência obrigatório para a orientação de indivíduos e grupos, no contexto político. Analisando, sob esse enfoque, a ação de grupos e indivíduos, podemos discriminar dois tipos básicos de comportamento. Quando o fundamento e os fins do poder são percebidos como compatíveis ou de acordo com o próprio sistema de crenças e quando o agir é orientado para a manutenção dos aspectos básicos da vida política, o comportamento de indivíduos e grupos pode ser definido como legitimação. Quando, ao contrário, o Estado é percebido, na sua estrutura e nos seus fins, como estando em contradição com o próprio sistema de crenças, e se este julgamento negativo se transformar numa ação que busque modificar os aspectos básicos da vida política, então esse comportamento poderá ser definido como contestação da Legitimidade.
O comportamento de legitimação não se aplica somente às forças que sustentam o Governo, mas também às que a ele se opõem, na medida em que não têm como finalidade a mudança também do regime ou da comunidade política. A aceitação das "regras do jogo", isto é, das normas que servem de sustentação ao regime, implica não apenas, como já foi salientado, a aceitação do Governo e de suas ordens, mas também a legítima aspiração, para a oposição, de se transformar em Governo.
A diferença entre oposição ao Governo e contestação da Legitimidade corresponde, num certo sentido, à existente entre política reformista e política revolucionária. O primeiro tipo de luta busca alcançar mudanças, mantendo de pé as estruturas políticas existentes, combate o Governo, mas não combate as estruturas que condicionam sua ação e, enfim, propõe uma diferente maneira para a gestão do sistema estabelecido. O segundo tipo de luta se dirige contra a ordem constituída, tendo como objetivo a modificação substancial de alguns aspectos fundamentais; não combate apenas o Governo, mas também o sistema de Governo, isto é, as estruturas que ele exprime.
A esta altura, estamos já examinando o comportamento de contestação da Legitimidade. Precisamos, nesse campo, distinguir entre duas atitudes: a de revolta e a revolucionária. A atitude de revolta se limita à simples negação, à rejeição abstrata da realidade social, sem determinar historicamente a própria negação e a própria rejeição. Conseqüentemente, não consegue captar o movimento histórico da sociedade, nem perceber objetivos concretos de luta, e acaba aprisionando-se numa realidade que não consegue alterar. A atitude revolucionária produz, ao contrário, uma negação, historicamente determinada, da realidade social. Seu grande problema é sempre o de encontrar formas concretas de luta, nascidas do movimento histórico real, que possibilitem realizar as transformações possíveis da sociedade. Isto significa que a ação revolucionária não terá nunca o objetivo de modificar radicalmente a sociedade, e, sim, buscará a derrubada das instituições políticas que dificultam seu desenvolvimento e a criação de novas instituições capazes de libertar as tendências amadurecidas na sociedade para formas mais elevadas de convivência. No momento de escolher um método legal ou ilegal para a realização dos objetivos revolucionários, esse problema é abordado como algo a ser resolvido nas diferentes fases da luta, sempre em função da utilidade e eficácia de cada ação para a consecução dos objetivos. A estratégia escolhida precisa estar de acordo com as circunstâncias históricas em que a luta acontece, circunstâncias essas que não podem ser objeto de escolha.
Observe-se, finalmente, que a contestação da Legitimidade pode ter uma conotação tanto de esquerda quanto de direita. São disso um exemplo as oposições fascista e nazista aos regimes democráticos na Itália e na França, e também a oposição nacionalista contra o movimento de unificação européia.
IV. Estrutura política e social, crença na legitimidade e ideologia. A influência exercida pelo consenso dos membros de uma comunidade política na legitimação do Estado, seja ele qual for, mesmo o mais democrático, não tem, de maneira alguma, sempre o mesmo peso. O povo não é um somatório abstrato de indivíduos, cada qual participando diretamente com igual fatia de poder no controle do Governo e no processo de elaboração das decisões políticas, como aparenta a ficção jurídica da ideologia democrática. As relações sociais não subsistem entre indivíduos totalmente autônomos, mas entre indivíduos inseridos num contexto, que desempenham um papel definido pela divisão social do trabalho. Ora, a divisão do trabalho e a luta social e política dela decorrente fazem com que a sociedade nunca seja pensada através de representações que correspondem à realidade, mas através de uma imagem deformada pelos interesses dos protagonistas desta luta (a ideologia), cuja função é a de legitimar o poder constituído Não se trata de uma representação totalmente ilusória da realidade, nem de uma simples mentira. Toda ideologia e todo princípio de Legitimidade do poder, para se justificarem eficazmente, precisam conter também elementos descritivos, que os tornem dignos de confiança e, conseqüentemente, idôneos para produzir o fenômeno do consenso. Por isso, quando as crenças que sustentam o poder não correspondem mais à realidade social, são deixadas de lado e assistimos à mudança histórica das ideologias.
Quando o poder é firme e em condição de desempenhar, de maneira progressista ou conservadora, suas funções essenciais (defesa, desenvolvimento econômico, etc.), faz com que seja aceita a justificação de seu existir, apelando para determinadas exigências latentes nas massas, e com a força de sua própria presença acaba se criando o consenso necessário. Nos períodos de estabilidade política e social, a influência, na formação da consciência social, dos que a divisão do trabalho colocou no vértice da sociedade é determinante, visto estarem eles em condições de condicionar, de maneira relevante, o comportamento dos que não desempenham papéis privilegiados. Para esta última categoria de pessoas, a realidade do Estado se manifesta, sobremaneira, imponente, a experiência que fazem do Estado os leva a encará-lo como algo relacionado com as forças da própria natureza ou como sendo condição necessária e imutável do viver em comum. Por outro lado, para se adaptar à dura realidade de sua condição social, a pessoa comum sente-se impulsionada a idealizar sua passividade e seus sacrifícios em nome de princípios absolutos capazes de fornecer realidade ao desejo e verdade à esperança.
Quando, ao contrário, o poder está em crise, por ter sua estrutura entrado em contradição com a evolução da sociedade entra em crise também o princípio da Legitimidade que o justifica. Isto ocorre porque, nas fases revolucionárias, ou seja, quando a estrutura do poder desmorona, caem também os véus ideológicos que camuflavam ao povo a realidade do poder, e se manifesta às claras sua inadequação para resolver os problemas que amadurecem na sociedade. Neste momento, a consciência das massas entra em contradição com a estrutura política da sociedade; todos se tornam politicamente ativos, por serem simples as opções e por envolverem diretamente as pessoas comuns; o poder de decisão se encontra, de fato, nas mãos de todos. Naturalmente, fenômenos dessa ordem acontecem até a hora em que surge um outro poder e, conseqüentemente, um outro princípio de Legitimidade. A experiência histórica mostra que a cada tipo de Estado corresponde um diferente tipo de Legitimidade, isto é: a cada maneira de lutar pelo poder corresponde uma diferente ideologia dominante.
V. Aspecto de valor da legitimidade. O consenso em relação ao Estado nunca foi (nem é) livre, ao contrário, sempre foi (e é), pelo menos em parte, forçado e manipulado. Normalmente, a legitimação se apresenta como uma necessidade, seja qual for o tipo de Estado. Inúmeras pesquisas sociológicas provaram, por exemplo, que o fenômeno da manipulação do consenso existe também nos países democráticos. Ora, uma vez que o poder é o determinante, pelo menos parcial, do conteúdo do consenso e que, conseqüentemente, podem existir nele diferentes níveis de liberdade e de coação, não parece justo caracterizar como legítimo, nem um Estado democrático, nem um Estado tirânico, pelo simples fato de que em ambos se manifesta a aceitação do sistema.
Se nos limitarmos a definir legítimo um Estado cujos valores e estruturas fundamentais são aceitos, acabaremos por englobar nesta formulação também o contrário do que normalmente se entende por consenso: o consenso imposto e o caráter ideológico de seu conteúdo. A definição geral proposta no início acabou, pois, por se revelar insatisfatória, uma vez que pode ser aplicada a qualquer conteúdo. Para superar tal incongruência, que parece invalidar a própria exatidão semântica da definição descritiva, faz-se necessário evidenciar uma característica que o termo Legitimidade tem em comum com muitos outros termos da linguagem política (liberdade, democracia, justiça, etc.): o termo Legitimidade designa, ao mesmo tempo, uma situação e um valor de convivência social. A situação a que o termo se refere é a aceitação do Estado por um segmento relevante da população; o valor é o consenso livremente manifestado por uma comunidade de homens autônomos e conscientes. O sentido da palavra Legitimidade não é estático, e, sim, dinâmico; é uma unidade aberta, cuja concretização é considerada possível num futuro indefinido, e a realidade concreta nada mais é do que um esboço desse futuro. Em cada manifestação histórica da Legitimidade, vislumbra-se a promessa, até agora sempre incompleta na sua manifestação, de uma sociedade justa, onde o consenso, que dela é a essência, possa se manifestar livremente sem a interferência do poder ou da manipulação e sem mistificações ideológicas. Antecipamos, assim, quais as condições sociais que possibilitam a aproximação à plena realização do valor inerente ao conceito de Legitimidade: a tendência ao desaparecimento do poder, quer das relações sociais, quer do elemento psicológico a ele associado: a ideologia.
O critério que possibilita a discriminação dos diferentes tipos de consenso parece, pois, consistir na variação dos graus de deformação ideológica a que é sujeita a crença na Legitimidade e no correspondente e diverso grau de manipulação a que essa crença é submetida. Com base nesse critério, é possível provar que não são iguais todos os tipos de consenso e que será mais legítimo o Estado onde o consenso tem condições de ser manifestado mais livremente, onde, em suma, for bem menor a interferência do poder e da manipulação e, portanto, bem menor o grau de deformação ideológica da realidade social na mente dos indivíduos. O consenso será, pois, mais aparente, e conseqüentemente de pouca consistência real, na medida em que for forçado e tiver um caráter ideológico. Com esse ponto de partida, podemos formular uma nova definição de Legitimidade que nos permita superar as limitações e incongruências da que foi proposta no início. Trata-se fundamentalmente de integrar na definição o aspecto de valor, elemento constitutivo do fenômeno. Podemos, pois, afirmar que a Legitimidade do Estado é uma situação nunca plenamente concretizada na história, a não ser como aspiração, e que um Estado será mais ou menos legítimo na medida em que torna real o valor de um consenso livremente manifestado por parte de uma comunidade de homens autônomos e conscientes, isto é, na medida em que consegue se aproximar à idéia limite da eliminação do poder e da ideologia nas relações sociais.
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