quinta-feira, 5 de março de 2009

Conceito de Autoridade

DICIONÁRIO DE POLÍTICA

Autoridade

I. A autoridade como poder estabilizado. Na tradição cultural do Ocidente, desde que os romanos cunharam a palavra auctoritas, a noção de autoridade constitui um dos termos cruciais da teoria política, por ter sido usada em estreita conexão com a noção de poder.

A situação atual dos usos desse termo é muito complexa e intrincada. Enquanto, de um modo geral, sua estreita ligação com o conceito de poder permaneceu, a palavra autoridade passou a ser reinterpretada de vários modos e empregada com significados notavelmente diversos. Por vezes se negou, explícita ou implicitamente, que exista o problema de identificar o que seja autoridade e o de descrever as relações entre autoridade e poder: em particular por parte daqueles que usaram poder e autoridade como sinônimos. Mas existe a tendência, há muito tempo generalizada, de distinguir entre poder e autoridade, considerando esta última como uma espécie do gênero "poder" ou até, mas mais raramente, como uma simples fonte de poder.

Um primeiro modo de entender a autoridade como uma espécie de poder seria o de defini-la como uma relação de poder estabilizado e institucionalizado em que os súditos prestam uma obediência incondicional. Essa concepção manifesta-se sobretudo no âmbito da ciência da administração. Dentro dessa concepção, temos
autoridade quando o sujeito passivo da relação do poder adota como critério de comportamento as ordens ou diretrizes do sujeito ativo sem avaliar propriamente
seu conteúdo. A obediência baseia-se unicamente no critério fundamental da recepção de uma ordem ou sinal emitido por alguém. A essa atitude do sujeito passivo pode corresponder uma atitude particular até em quem exerce autoridade. Este transmite a mensagem sem dar as razões e espera que seja aceito incondicionalmente. Assim entendida, a autoridade se opõe à relação de poder baseado na persuasão. Nessa última relação, C utiliza argumentos em favor do dever ou da oportunidade de um certo comportamento na relação de autoridade; ao contrário, C transmite uma mensagem que contém a indicação de um certo comportamento, sem, entretanto, usar de nenhum argumento de justificação. Na relação de persuasão, R adota o comportamento sugerido por C porque aceita os argumentos apresentados por C, em seu favor; na relação de autoridade, ao contrário, R adota o comportamento indicado por C independentemente de qualquer razão que possa eventualmente aconselhá-lo ou desaconselhá-lo. Atendo-nos a essa primeira definição de autoridade, o que conta é que R obedeça de modo incondicional às diretrizes de C; para uma identificação da autoridade não importa saber qual o fundamento em que se baseia R para aceitar incondicionalmente a indicação de C e esse para exigir obediência incondicional. Esse fundamento tanto pode consistir na legitimidade do poder de C como num condicionamento fundado na violência. David Easton estabeleceu precisamente uma distinção entre "autoridade legítima" e "autoridade coercitiva". Foi dentro de uma perspectiva análoga que Amitai Etzioni apresentou uma articulada classificação das formas de autoridade e organização, embora ele não use a palavra "autoridade" como termo-chave. Distingue três tipos de poder: "coercitivo", baseado na aplicação ou ameaça de sanções físicas; "remunerativo", baseado no controle dos recursos e das retribuições materiais; "normativo", baseado na alocação dos prêmios e das privações simbólicas. São três os tipos de orientação dos subalternos em face do poder: "alienado", intensamente negativo; "calculador", negativo ou positivo de intensidade moderada; "moral", intensamente positivo. Combinando juntamente os três tipos de poder e os três tipos de orientação dos subalternos, Etzioni descobre três casos "congruentes" de autoridade e organização e diversos outros casos "incongruentes" ou mistos. Os congruentes são: a autoridade e as correspondentes organizações "coercitivas" (poder coercitivo e orientação alienada); a autoridade e as organizações "utilitárias" (poder remunerativo e orientação calculadora); a autoridade e as organizações "normativas" (poder normativo e orientação moral). A esses diversos tipos de autoridade e de organização são depois ligados numerosos aspectos da estrutura e do funcionamento das organizações. James S. Coleman, por sua vez, fez recentemente uma distinção entre sistemas de autoridade "disjuntos", em que os subalternos aceitam a autoridade para obter vantagens extrínsecas – por exemplo, um salário –, e sistemas de autoridade "conjuntos", em que os subalternos esperam benefícios (intrínsecos) do seu exercício; e entre sistemas de autoridade "simples", nos quais a autoridade é exercida pelo seu detentor, e sistemas de autoridade "complexos", em que a autoridade é exercida por lugar-tenentes ou agentes delegados pelo detentor da autoridade; baseado em tais distinções, propôs algumas hipóteses interessantes sobre a estática e a dinâmica das relações de autoridade.

A autoridade, tal como a temos entendido até aqui, como poder estável, continuativo no tempo, a que os subordinados prestam, pelo menos dentro de certos limites, uma obediência incondicional, constitui um dos fenômenos sociais mais difusos e relevantes que pode encontrar o cientista social. Praticamente todas as relações de poder mais duráveis e importantes são, em maior ou menor grau, relações de autoridade: o poder dos pais sobre os filhos na família, o do mestre sobre os alunos na escola, o poder do chefe de uma igreja sobre os fiéis, o poder de um empresário sobre os trabalhadores, o de um chefe militar sobre os soldados, o poder do Governo sobre os cidadãos de um Estado. A estrutura de base de qualquer tipo de organização, desde a de um campo de concentração à organização de uma associação cultural, é formada, em grande parte, à semelhança da estrutura fundamental de um sistema político tomado como um todo, por relações de autoridade. Não há, pois, por que admirar-se se o conceito de autoridade ocupa um lugar de primeiro plano na teoria da organização; nem é de admirar que tão freqüentemente se faça uso do conceito de autoridade para definir o Estado ou a sociedade política. Ainda recentemente o politólogo H. Eckstein propôs que se identificasse a política pelas "estruturas de autoridade"; e definiu a estrutura de autoridade como "um conjunto de relações assimétricas, entre membros de uma unidade social ordenados de um modo hierárquico, que têm por objeto a condução da própria unidade social". Na realidade, a estratificação da autoridade política na sociedade é um fenômeno tão persistente que se afigura a vários autores como parte da hereditariedade biológica da espécie.

Até agora ressaltamos, de forma acentuada, por um lado, o caráter hierárquico, por outro, a estabilidade da autoridade. Mas observe-se, no tocante ao primeiro ponto, que a autoridade, tal como a definimos até aqui, se é particularmente característica das estruturas hierárquicas, não pressupõe, contudo, necessariamente, a existência de tal estrutura, nem mesmo de uma organização formal. Pode verificar-se também em relações de poder informal. Por exemplo, C pode estar disposto a aceitar incondicionalmente as opiniões de R (um escritor ou jornalista) no âmbito de uma certa matéria. Quanto ao segundo ponto, não se há de esquecer o fato de que toda a autoridade "estabelecida" se formou num determinado lapso de tempo, surgindo inicialmente como uma autoridade "emergente" e acumulando pouco a pouco crédito ou uma aquiescência cada vez mais sólida e mais vasta no ambiente social circunstante, até se transformar exatamente em autoridade estabelecida, ou seja, em poder continuativo e cristalizado. De fato, entre autoridade estabelecida e autoridade emergente, manifestam-se freqüentemente duros conflitos que constituem uma dimensão muito importante da dinâmica de um sistema político.

II. A autoridade como poder legítimo. A definição de autoridade como simples poder estabilizado a que se presta uma obediência incondicional, prescindindo do fundamento específico de tal obediência, parece, no entanto, demasiado lata a muitos politólogos e sociólogos. Tem-se afirmado que tal definição contrasta muitas vezes com os usos da linguagem ordinária, em que uma expressão como "autoridade coercitiva" parece contraditória e é claramente incompatível com a concepção tradicional dos governantes privados de autoridade: usurpadores, conquistadores e "tiranos" em geral. Daí a segunda e mais comum definição de autoridade, segundo a qual nem todo poder estabilizado é autoridade, mas somente aquele em que a disposição de obedecer de forma incondicionada se baseia na crença da legitimidade do poder. A autoridade, nesse segundo sentido, o único de que nos ocuparemos daqui para frente, é aquele tipo particular de poder estabilizado que chamamos "poder legítimo".

Como poder legítimo, a autoridade pressupõe um juízo de valor positivo em sua relação com o poder. A esse propósito, deve notar-se, em primeiro lugar, que o juízo de valor pode ser formulado pelo próprio estudioso no âmbito da filosofia ou da doutrina política; mas pode também ser destacada pelo pesquisador como juízo de pessoas implicadas na relação de autoridade no âmbito dos estudos políticos ou sociológicos de orientação empírica. Todas essas concepções de autoridade como poder legítimo que comportam um juízo de valor, por parte do pesquisador, não podem ser aceitas no discurso da ciência, que se mantém no campo da descrição. Portanto, a expressão "poder legítimo" deve ser entendida aqui no sentido de poder considerado como legítimo por parte de indivíduos ou grupos que participam da mesma relação de poder. Em segundo lugar, devemos ter presente que uma avaliação positiva do poder pode dizer respeito a diversos aspectos do próprio poder: conteúdo das ordens, o modo ou o processo como as ordens são transmitidas ou a própria fonte de onde provêm as ordens (comando). O juízo de valor que funda a crença na legitimidade é mencionado em último lugar: ele diz respeito à fonte do poder. A fonte do poder pode ser identificada em vários níveis (v. Legitimidade) e estabelece por isso a titularidade da autoridade. No âmbito social em que se situam as relações de autoridade, tende a tornar-se crença que quem possui autoridade tem o direito de mandar ou de exercer, pelo menos, o poder e os que estão sujeitos à autoridade têm o dever de obedecer-lhe ou de seguir suas diretrizes. É fácil concluir que esse "direito" e esse "dever" podem ser mais ou menos formalizados e podem apoiar-se na obrigação de dever típica da esfera ética, como acontece para os três tipos de legitimidade especificados por Max Weber ou numa simples autoridade, como pode acontecer no caso de autoridade fundada em específica competência.

Combinando essa segunda definição com a que foi mencionada anteriormente, pode-se dizer que na autoridade é a aceitação do poder como legítimo que produz a atitude mais ou menos estável no tempo para a obediência incondicional às ordens ou às diretrizes que provêm de uma determinada fonte. Naturalmente, isso se verifica dentro da esfera de atividade à qual a autoridade está ligada ou dentro da esfera de aceitação de autoridade. É evidente, na verdade, que uma relação de autoridade como toda e qualquer outra relação de poder diz respeito a uma esfera que pode ser mais ou menos ampla ou mais ou menos explícita e claramente delimitada. Acrescente-se que a disposição para a obediência incondicional, embora durável, não é permanente. A fim de que a relação de autoridade possa prosseguir, ocorre que, de tempos em tempos, seja reafirmada ostensivamente a qualidade da fonte do poder à qual é atribuído o valor que funda a legitimidade. Por exemplo, a continuidade de uma relação de autoridade fundada sobre a legitimidade democrática comporta a renovação periódica do procedimento eleitoral; e a continuidade de uma autoridade carismática de um chefe religioso requer, de vez em quando, a realização de ações extraordinárias ou milagrosas que possam confirmar a crença de que o chefe possui a "graça divina".

Como veremos mais adiante, para a concepção de autoridade como poder legítimo pode convergir, parcialmente, uma terceira definição de autoridade como espécie de poder: aquela que a identifica com o poder "formal" (o poder que deveria ser exercido num certo espaço social). E o mesmo se pode dizer também para a concepção da autoridade como fonte de poder, desde que a mesma seja oportunamente corrigida. Essa última concepção foi defendida sobretudo por Carl J. Friedrich, segundo o qual a autoridade não é uma relação entre seres humanos, mas uma qualidade particular das comunicações que tanto podem ser ordens como conselhos ou opiniões que um indivíduo transmite a outro. Essa qualidade consiste no fato de a comunicação ser susceptível de uma elaboração racional, não em termos de demonstração científica ou matemática, mas nos termos dos valores aceitos por aqueles entre os quais tramita a mensagem. Tal qualidade torna as comunicações merecedoras de aceitação aos olhos daqueles a quem são dirigidas. Portanto, a autoridade não é uma espécie de relação de poder se ela pode ser uma fonte de poder: a capacidade que um homem tem de transmitir comunicações susceptíveis de uma elaboração racional – no sentido exposto – constitui para ele uma fonte de poder.

O limite dessa concepção de autoridade é que, a menos que se hipostasie a razão, a possibilidade de uma elaboração racional não pode partir de uma comunicação considerada em si mesma, mas deve centrar-se sobre a capacidade de fornecer uma tal elaboração da parte de quem transmite a comunicação e sobre o reconhecimento que de tal capacidade fazem os destinatários da comunicação. Convém lembrar, entretanto, que uma comunicação tem autoridade, não em virtude de uma qualidade intrínseca, mas pela relação com a fonte de que provém, da maneira como tal fonte é destinada por aqueles a quem a comunicação é dirigida. Tanto é verdade que uma mesma opinião pode ser considerada autorizada quando é proclamada por Tício e não ser considerada tal quando formulada por Caio. Interpretado dessa forma, o fenômeno explicado por Friedrich pode ser expresso dessas duas maneiras: num sentido mais simples, é a crença de R na capacidade de C em elaborar, de modo racional, as suas comunicações nos termos dos valores aceitos por R; num sentido mais complexo, é uma relação na qual R aceita a mensagem de C, não porque R conhece e acha positivas as razões que justificam a mensagem – e normalmente sem que C formule tais razões –, mas porque R crê que C seria capaz de dar razões convincentes nos termos dos valores por ele aceitos, como apoio da comunicação.
Trata-se, nesse segundo sentido, de um tipo particular de relação de autoridade, entendida como poder legítimo; e no primeiro, trata-se da crença da legitimidade que a fundamenta.

III. Eficácia e estabilidade da autoridade. A autoridade comporta, portanto, de um lado, a aceitação do dever da obediência incondicional e, de outro, a pretensão a tal dever, ou – o que é a mesma. coisa – ao direito de ser incondicionalmente obedecido. Nesse sentido, pode construir-se um tipo puro de autoridade: uma relação de poder fundada exclusivamente na crença da legitimidade. C funda a própria pretensão de achar obediência unicamente na crença na legitimidade do próprio poder; e R é motivado a prestar obediência unicamente pela crença na legitimidade do poder de C. Trata-se de um tipo "ideal" difícil de encontrar na realidade; normalmente, a crença na legitimidade não é fundamento exclusivo do poder, mas somente uma de suas bases. O detentor do poder pretende obediência não só por força da legitimidade de seu poder, mas ainda com base na possibilidade de obrigar ou punir, aliciar ou premiar. De outra parte, a crença na legitimidade do poder, como motivação de quem se conforma com as diretrizes de outrem, é muitas vezes acompanhada de outras motivações como podem ser coisas de interesse próprio ou medo de um mal por ameaça. Tratar-se-á de relações de poder que só parcialmente e em certa medida assumem a forma de relações de autoridade. Além disso, pode acontecer que o poder seja reconhecido como legítimo somente por um dos lados da relação. Em tal caso, pode falar-se ainda de autoridade quando a crença na legitimidade do poder motiva apenas a obediência, mas não se pode dizer o mesmo quando ela motiva apenas o comando. Nessa última hipótese, na verdade, ao comando não sucede a obediência, ou melhor, sucede a obediência, mas noutras bases (temor da força, interesse, etc.), enquanto se quem obedece o faz porque crê legítimo o poder, a relação pode dizer-se fundada sobre a crença na legitimidade, quer o autor das ordens condivida de tal crença ou não.

A importância peculiar da crença na legitimidade, que transforma o poder em autoridade, consiste no fato de esta tender a conferir ao poder eficácia e a estabilidade. E isso tanto do lado do comando como do lado da obediência. Em primeiro lugar de vista, deve destacar-se o efeito psicológico que a fé na legitimidade do poder tende a exercer em quem o detém. É por isso que se firma que a diminuição dessa fé conduz ao descalabro do poder. Sem sermos levados a afirmações tão gerais e peremptórias, podemos afirmar, com razão, que a crença na legitimidade do poder tende a conferir ao comando certas características, como as de convicção, as de determinação e as de energia, que contribuem para sua eficácia.

Em segundo lugar, a crença na legitimidade tem um efeito relevante sobre a coesão entre os indivíduos e os grupos que detêm o poder. O fato de todos os indivíduos ou grupos que participam do poder numa organização condividirem a crença na legitimidade do poder da organização põe limites aos conflitos internos e dá, muitas vezes, o princípio de sua solução. Nasce daí uma maior coesão entre os detentores do poder e, por conseqüência, uma maior estabilidade e eficácia do poder. Uma classe política articulada numa pluralidade de grupos, os quais reconhecem toda a legitimidade do regime político, dá origem, em igualdade com outras condições, a Governos mais estáveis e eficazes do que aqueles que foram originados por uma classe política na qual uma parte importante não reconhece o regime como legítimo. Pelo lado da obediência, a crença na legitimidade faz corresponder o comportamento de obediência a um dever e tende a criar uma disposição à obediência incondicional. Na medida em que a obediência se converte num dever, a relação de poder adquire maior eficácia: as ordens são cumpridas prontamente sem que os detentores do poder tenham de recorrer a outros meios para exercer o poder, como a coação, a satisfação de interesses dos súditos ou até a persuasão que comportam maiores custos. De outra parte, na medida em que se gera uma disposição para obedecer, o poder se estabiliza; e essa estabilidade é tanto mais sólida quanto a disposição para obedecer é, dentro da esfera de aceitação da autoridade, incondicional. E é necessário acrescentar que existe também um nexo indireto entre crença na legitimidade do poder e disposição para obedecer: num âmbito social no qual um certo poder é larga e intensamente tido como legítimo, quem não o reconhece como tal pode ser sujeito a notáveis pressões laterais – provenientes de outros indivíduos ou grupos sujeitos ao mesmo poder – que tendem a induzi-lo a obedecer por razões de oportunidade prática: para não ver perturbada a sua vida de afetos e de relação na família, nas relações de amizade, de trabalho, etc.

IV. Ambigüidade da autoridade. Já dissemos que a crença na legitimidade constitui normalmente uma entre as muitas bases de uma relação de poder. É necessário, portanto, acrescentar que, entre crença na legitimidade e outras bases do poder, pode haver relações significativas que alteram de forma substancial o aspecto autônomo de tal crença e conferem à autoridade um caráter particular de ambigüidade. Por um lado, a crença na legitimidade pode originar parcialmente o emprego de outros meios para exercer o poder: o uso da violência, por exemplo. Por outro lado, a crença na legitimidade pode constituir, por sua vez, uma simples conseqüência psicológica da existência de um poder fundado, de fato, sobre outras bases.

A violência pode derivar, em qualquer grau da crença na legitimidade do poder: a crença de R na legitimidade do poder de C legitima, aos olhos de R, e facilita, portanto, o emprego da força em relação a R1, ou em relação ao próprio R. No primeiro caso: uma forte crença na legitimidade do poder político da parte de uma minoria da sociedade legitima e facilita o emprego de outros instrumentos de poder, incluindo a violência, em relação à maioria; ou então uma crença bastante divulgada na legitimidade do poder político legitima e facilita o emprego da violência em relação aos poucos recalcitrantes. No segundo caso: os sequazes de um chefe religioso, que é tido como representante da divindidade, aceita como legítima a violência empregada contra ele ou então a provoca ele mesmo, como punição para um comportamento próprio de dissidência. Em todas essas hipóteses, a legitimidade do poder se traduz na legitimidade da violência. Daí se segue que esta última perde, para quem a considera legítima, o seu caráter alienante; e segue-se, também, a possível tendência, também para quem a considera legítima, à colaboração ativa ou passiva para seu emprego. Em outras palavras, o emprego da violência torna-se possível, em grau maior ou menor, a partir da crença na legitimidade que transforma o poder em autoridade. Convém recordar que essa relação entre crença na legitimidade e violência não é uma curiosidade teórica. O grau e a intensidade com que a fé cega no princípio da legitimidade do poder pode desencadear a violência estão indelevelmente inscritos na história do homem. Testemunham-no a caça às bruxas e os linchamentos dos desviados e rejeitados, gerados, em apoio a uma determinada autoridade, pelos fanatismos políticos e religiosos de todos os tempos. Testemunha-o a imensa violência que por vezes tem sido desencadeada em nosso século pela crença fanática num chefe ou numa ideologia totalitária.

Por outro lado, como paradigma de relação do poder em que a crença na legitimidade pode constituir uma simples conseqüência psicológica, podemos tomar o exemplo de pai e filho, no qual se encontra geralmente, dentro de certos limites de tempo, quer uma preponderância de força quer uma dependência econômica. Nesse caso, o emprego da força e o condicionamento econômico, mais do que uma derivação, podem ser a fonte da crença na legitimidade do poder do pai. Pode acontecer, certamente, que o respeito e o afeto legitimem, aos olhos do filho, o poder do pai, incluindo o poder de punir; mas pode acontecer, também, que o poder efetivo de punir do pai cause no filho um respeito e um afeto e, portanto, uma crença na legitimidade que não são genuínos. Falando de crença não genuína, refiro-me não apenas ao engano deliberado que também pode estar presente nas relações de poder mas, e sobretudo, ao mais importante fenômeno do auto-engano; não à falsidade consciente, mas à falsa consciência, que é o conceito central da Ideologia no seu significado de origem marxista. Nesse sentido, convém averiguar-se em que grau a crença na legitimidade tem caráter ideológico. Se o grau for muito elevado, não teremos mais uma relação de autoridade, mas uma falsa autoridade, enquanto a crença na legitimidade da autoridade não constitui um fundamento real do poder. Isso explica por que uma situação real de poder à qual antes correspondia uma crença na legitimidade pode perder mais ou menos repentinamente tal legitimidade. Trata-se de uma situação de poder fundada principalmente sobre outras bases, por exemplo, sobre a força, mas à qual, até que pareça imodificável, convém, de qualquer modo, adaptar-se. Daqui, o aparecimento de uma crença na legitimidade com caráter prevalentemente ideológico. Mas essa legitimidade tende, bem depressa, a cair logo que a preponderância da força diminuir ou a situação do poder começar a aparecer concretamente modificável.

Outros aspectos da ambigüidade da autoridade provêm do fato de o titular da autoridade poder não dispor, em medida maior ou menor, do poder efetivo; e ainda do fato de os destinatários das ordens poderem perder a crença no princípio de legitimidade sobre o qual o detentor do poder funda a sua pretensão de mando. Para o primeiro desse fenômeno chamou a atenção, sobretudo, Lasswell, o qual, ao definir autoridade como "poder formal" afirmou que "dizer que uma pessoa tem autoridade não é dizer que efetivamente tem poder, mas que a fórmula política (isto, é os símbolos políticos que dão a legitimidade do poder) lhe atribui poder e aqueles que aderem à fórmula esperam que aquela pessoa tenha poder e consideram justo e correto o exercício que ela faz dele". Por um lado, essa afirmação encerra uma confusão entre duas noções distintas: a da autoridade e a da crença na legitimidade do poder. Uma coisa é meu juízo de valor, na base do qual reputo legítimo o comando que provém de uma certa fonte: a tal crença podem corresponder ou não efetivas relações de poder; e outra coisa é o meu comportamento, pelo qual me adapto incondicionalmente a certas diretrizes porque as tenho como legítimas em virtude da fonte de qual provêm: trata-se, nesse caso, de uma verdadeira relação de poder, um poder de tipo "A". De outro lado, porém, a afirmação de Lasswell pode ser entendida no sentido de que aquele que possui certa autoridade pode não ter todo o poder que na aparência exerce na relação de autoridade. As relações de autoridade podem ser acompanhadas de outras relações de poder ainda mais relevantes; e o titular de autoridade, ao dar suas ordens, pode ser condicionado de forma substancial por outras relações de poder não legítimas e, talvez, largamente desconhecidas. E na medida em que isso acontece, podemos dizer que a autoridade é apenas "aparente"; uma vez que C, enquanto acha que deve obedecer ao poder político de A, obedece, ao contrário, em maior ou menor grau, ao poder não legítimo de D.

Lembraríamos a esse propósito todos os conselheiros secretos e todos os centros de poder que às vezes dirigiram, desde os bastidores, a representação da autoridade iluminada pelas luzes da ribalta, bem como as transformações dos regimes políticos nas quais as mudanças na distribuição do poder efetivo precederam as da crença na legitimidade, vindo assim os regimes a se tornarem mais ou menos formalistas: o rei aparece ainda como titular exclusivo da autoridade, quando o poder já passou definitivamente às mãos do Parlamento.

Consideremos agora o ponto em que existe, nos destinatários das ordens, menor crença na legitimidade do poder. Tal queda de crença na legitimidade pode verificar-se seja porque os súditos não crêem mais que a fonte de poder tenha a qualidade que antes lhe atribuíam (por exemplo, a legitimidade não foi "provada" ou foi considerada "ideológica"), seja porque os subordinados terminaram por abandonar o velho princípio da legitimidade para abraçar um novo. Em ambos os casos, a situação é normalmente de profundo conflito. Tanto os superiores como os subordinados tendem a considerar-se traídos nas suas expectativas e nos seus valores. A relação de autoridade, então, diminui e, se a pretensão de mando permanece, instaura-se uma situação de Autoritarismo (v.). Num dos seus possíveis significados, o termo "autoritarismo" designa, na verdade, uma situação na qual as decisões são tomadas de cima, sem a participação ou o consenso dos subordinados. Nesse sentido, é uma manifestação de autoritarismo alegar um direito em favor de um comando que não se apóia na crença dos subordinados; e é uma manifestação de autoritarismo pretender uma obediência incondicional quando os súditos entendem colocar em discussão os conteúdos das ordens recebidas. Portanto, uma situação de autoritarismo tende a instaurar-se todas as vezes que o poder é tido como legítimo por quem o detém, mas não é mais reconhecido como tal por quem a ele está sujeito. E essa situação se acentua caso o detentor do poder recorra à força ou a outros instrumentos de poder para obter aquela obediência incondicional que não consegue mais na base da crença na legitimidade.

Observe-se que esse fenômeno da transformação da autoridade em autoritarismo, com a simples mudança dos princípios de legitimidade aceitos pelos subordinados, pode referir-se a todas as estruturas da autoridade, incluída a do Estado. Lembrarei apenas a esse propósito os processos profundos de emancipação que se acham às vezes presentes nos movimentos nacionalistas de independência, mediante os quais grupos de homens mais ou menos numerosos rompem as barreiras de suas consciências, que os ligavam às velhas autoridades.

Portanto, ainda que como tipo puro constitua a forma mais plena de poder socialmente reconhecido e aceito como legítimo, na realidade da vida social e política, a autoridade é muitas vezes contaminada e apresenta, sob vários aspectos, uma característica de ambigüidade. Ela pode ser geradora de violência, na medida em que a crença na legitimidade de alguns consente o emprego da força em relação a outros; pode ser "falsa" na medida em que a crença na legitimidade não é uma fonte mas uma conseqüência psicológica, que tende a esconder ou a deformar; pode ser apenas "aparente", uma vez que o titular legítimo do poder não detém o poder efetivo; e pode transformar-se em autoritarismo, na medida em que a legitimidade é contestada e a pretensão do governante em mandar se torna, aos olhos dos subordinados, uma pretensão arbitrária de mando.


Nenhum comentário:

Postar um comentário